O CENÁRIO DA CULTURA NOVA-ERA

    Mestre Irineu, como os verdadeiros dirigentes religiosos inspirados, admitia a existência da pluralidade de bons caminhos de desenvolvimento espiritual.

    Tanto, que o Estatuto do Ciclu, a despeito de afirmar que, consolidados os fundamentos da [sua] ordem na constituição evangélica, suas bases se erguem na disciplina cristã, aconselhava a promoção das criaturas às suas respectivas doutrinas (grifo meu, aqui).

    Por isso intitulava-se “Centro livre”, antes de ser Ciclu.




"Centro livre", antes de ser "Ciclu"

    O que não é o mesmo que dizer que múltiplos sistemas de crença devam ser adotados concomitantemente e de modo sincrético, na medida em que o sincretismo termina por desrespeitar a identidade de cada sistema e a turvar a clara diferenciação entre distintos caminhos e propósitos.

    Como lembrei em A Verdade, além da doutrina, se toda religião parte da crença de haver um Princípio Criador, em geral intitulando-o ‘Deus’, é bom recordar que este Princípio Criador não se deixa limitar por sistema de crença algum, na medida em que os sistemas de crença das várias religiões são sempre, mas somente, distintos entendimentos humanos sobre o Princípio Criador graças ao qual a realidade existe, e sobre o tipo de relação que se pode estabelecer com este Princípio.

    Assim, no que se pode resumir como um espectro das possibilidades humanas de compreensão deste Princípio Criador, em que se vai da Impessoalidade do Confucionismo e do Taoísmo (a origem é um Vazio) à Pessoa única do Deus judeu ou islamita (a origem é um Alguém) e à Pessoa trinitária do Deus cristão (este Alguém-origem é uma Trindade), passando pelos múltiplos deuses hinduístas e budistas (há vários deuses), cada religião propõe um caminho específico para a experiência viva da relação do indivíduo com este Princípio Criador, com isso conformando sua identidade e propósito, e praticando um estilo próprio em seus cultos e rituais, com isso definindo o seu método.




    Disto decorre o fato de as religiões terem identidades diferentes e adotarem métodos também dessemelhantes (e até contrastados) para o estabelecimento e aprofundamento da relação do homem com o Princípio Criador, ao qual cada alma ressoa a seu próprio ritmo e modo – às vezes mais ou melhor, outras vezes menos ou pior –, consoante com as determinações de sua existência.

    Ou, como resumiu o pensador suíço Frithjof Schuon em Para compreender o Islã, se há diversas religiões – cada qual falando, por definição, uma linguagem absoluta e, por consequência, exclusiva –, é porque a diferença de religiões corresponde exatamente, por analogia, à diferença de indivíduos humanos. Em outros termos, se as religiões são verdadeiras, é porque foi Deus quem falou, e se elas são diversas, é porque Deus falou línguas diversas, conforme a diversidade de receptáculos.

    Todavia, nos anos 70, após o movimento hippie (é de 1973 a ópera-rock “Jesus Christ Superstar”) e no bojo de profundas alterações culturais, teve início o que veio a ser intitulado “Cultura Nova-Era”.



    Então, frisei no O Mensageiro que, no momento planetário em que vivemos, no qual a pressão incessante por comportamentos não-éticos é gerada e reforçada desde os anos 80 pelos valores que emolduram o capitalismo financeiro transnacional e sua busca incondicional de lucros, avolumam-se na mente coletiva pressões internas compensatórias, em cada nível individual envolvido, pela construção de possibilidades de evolução e de conhecimento mais bem conformados por princípios humanistas de compreensão das bases vitais da existência, de explícito respeito à diversidade da vida e de contínuo cuidado recíproco, na percepção de ser tudo a obra amorosa de Deus.

    Muitos são os aspectos positivos gerados por tais pressões, como o reconhecimento, em escala global, da dimensão espiritual do ser humano e de seu relacionamento sistêmico com o restante da criação, a ampla aceitação da necessidade humana de descobrir sentido na existência, a rejeição de enfoques mais frios ou somente racionais da espiritualidade e a admissão do desejo profundo de transformação pessoal e social, em todas as partes do mundo.

    Todavia, isto deu suporte ao que com velocidade veio a se chamar Cultura Nova-Era, que de ‘nova’ tem apenas o nome, já que é uma amálgama de religiões ou filosofias bastante antigas, como o Hinduísmo (desenvolvido nos 15 séculos anteriores a Cristo), o Gnosticismo (que vem desde os primeiros séculos da Era Cristã) e a Teosofia (surgida na Europa em 1875), acrescida de noções retiradas do Budismo, do Zen-budismo e do Espiritismo kardecista (surgido em 1857), entre outras, e enriquecida com rudimentos variados de informação científica e estímulos sensoriais de todos os tipos (aromas, sons, sabores, sensibilização tátil, imagens e posturas corporais específicas).





    Brotando na década em que o capital mundial construía a possibilidade de investir internacionalmente no segmento de serviços e as grandes empresas começavam a se interessar pelo negócio da informação e do entretenimento, atraídas por elevadas margens de ganho em escala e apoiadas nos avanços tecnológicos da sociedade do conhecimento (tecnologias da informação e da comunicação), a Cultura Nova-Era foi velozmente cooptada pelas forças econômicas do mercado, as quais impulsionaram celeremente tal amálgama por todo o planeta.

    Assim, na esteira da globalização e com o apoio maciço de todas as formas possíveis de mídia (para imagem, música, texto e movimento), a Cultura Nova-Era penetrou com grande rapidez todos os estratos populacionais.





    Exaltando a imensa riqueza de formas da experiência humana interna, mas, em contrapartida, reduzindo de forma drástica a possibilidade de adequado discernimento entre diferentes conceitos, práticas, propósitos e identidades.

    O universo está em cada um de nós, tudo é animado por um princípio vital de pura energia, o desenvolvimento requer contato com seres de luz, a integração permite ascender a esferas invisíveis, há um conhecimento superior que neutraliza as diferenças ou cada qual deve buscar seu mestre iluminado.

    Noções imprecisas como estas surgem e desaparecem uma atrás da outra sem cessar, em geral tendo reduzido compromisso com consistência ou perdurabilidade, até a próxima, mais nova, mais acessível ou mais atraente oferta de método de integração.

    Aliás, compromisso costuma ser um termo incômodo no panorama da Cultura Nova-Era, razão pela qual toda forma organizada de religião ou doutrina religiosa é rechaçada a priori, findando por predominar uma mescla de conceitos genéricos flutuantes, vivências indefiníveis e experiências muitas vezes vividas de modo compulsivo e descartável.

    Desta maneira, no tocante a religiosidade, se a Cultura Nova-Era não era cristã, também não era budista, ioruba, islâmica, judaica, hinduísta ou agnóstica, e menos ainda uma solução articulada consistente entre tais e tantas alternativas diferentes e contrastadas, o que, aliás, é impossível, tal a diferença entre os princípios fundamentais de crença envolvidos.

    Motivo pelo qual é crescente o número de pessoas que se dizem ‘espiritualistas’, mas não ‘religiosas’, sem que consigam definir com mais precisão a diferença entre tais expressões – assim como preferem o uso do termo ‘xamã’ a ‘pajé’, embora signifiquem exatamente o mesmo, por parecer mais sofisticado e menos desgastado por caricaturas culturais (‘tanga-de-penas-chocalho-e-cocar’, ‘uh-uh-uh’, no caso do pajé).




    Feito um caldo informe primordial, onde cada qual, e em seu modelo pessoal, deve ser ‘o’ ‘gerador de si mesmo’, dentro de princípios autoafirmativos próprios da superestrutura ideológica do capitalismo financeiro, que hipervalorizam o perfil empreendedor individual, a Cultura Nova-Era não oferece uma estrutura moral precisa, um corpo definido de práticas, uma base estabelecida de crença ou uma clara explicitação de finalidade: tudo é possível, desde que com respeito, dizem seus admiradores.

    É verdade: há pensadores com conteúdo e fôlego na Cultura Nova-Era e muitos deles desenvolveram conhecimentos de inegável valor! Contudo, mais e mais e mais se reafirma em videoclipes ou filmes, revistas ou livros de autoajuda, palestras ou cursos, documentários especiais, CD-Roms melódicos para apoio à meditação e publicações variadas de ciência livresca, entre as inumeráveis opções do mundo midiático, que cada qual será perfeitamente feliz se absorver técnicas de desenvolvimento interior, se harmonizar seu padrão energético, se souber integrar-se ao espírito crístico, se descobrir o caminho para a consciência planetária, se superar o próprio carma ou se o deus interno for despertado.

Tudo é energia, tudo é harmonia, tudo é alegria!





Para tanto, e de modo continuado, dentro da usual dificuldade humana de se perceber bem e se organizar melhor, a Cultura Nova-Era borra as diferenças entre Criador e criatura, entre natureza e humanidade, entre religião e superstição, entre fé esperançosa e magia, e entre realidade objetiva e realidade subjetiva, fundindo e confundindo de forma sistemática elementos perfeitamente distinguíveis entre si.

Tendo ocorrido o mesmo com a imagem pública da doutrina daimista, brotada no Acre em 1931 na missão religiosa estabelecida por mestre Irineu, mas amplamente divulgada apenas a partir dos anos 80.

No momento mundial em que, no vigoroso impulso da Cultura Nova-Era, a mata amazônica começava a parecer prometer a ‘volta a um paraíso do qual um dia se decaíra’ – em 1989 o músico Sting criaria a Rainforest Foundation –, razão pela qual se aproveitou para dizer capciosamente, exato no ano da Rio 92, que a floresta foi o cenário escolhido pelo mestre Irineu para a transição da velha para a Nova Era.




Afirmações como esta pareceram testificar o que passou a ser entendido e mostrado à opinião pública como ‘uma nova religião, apocalíptica e messiânica’, centrada em atividades de ‘cura’ e vagamente confundida com pajelança e crenças indígenas ou caboclas, tidas como ‘mais puras’ ou ‘mais naturais’, dentro de uma abordagem generalista que esquece que, no Brasil, existem 217 povos indígenas falando 180 idiomas diferentes – só na região Purus-Juruá, onde está a vila ‘Céu do Mapiá’ [principal núcleo organizador do “Cefluris”], vivem 11 povos expressando-se em quatro variações idiomáticas –,  grande parte dos quais sem nunca ter conhecido a ayahuasca (já que o cipó ‘jagube’ e a folha ‘rainha’, necessários para preparar a bebida, só ocorrem naturalmente na parcela norte-ocidental da Amazônia).

    Como consequência, a ‘doutrina daimista’ passou a ser popularmente intitulada ‘a religião do Santo Daime’ e até mesmo consta nas estatísticas do IBGEInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística como ‘religião de origem indígena’, a despeito de ter brotado em solo urbano e ter tido identidade rigorosamente cristã, sem nunca ter tido nada de indígena ou de pajelança [sequer cabocla]”.

Muito provavelmente colaborou para isto o fato de a missão religiosa estabelecida por mestre Irineu ter adotado a ingestão de daime em sua ritualística, como há etnias indígenas em vários países da América do Sul que o fazem em seus próprios rituais, sem que os pesquisadores atentassem para o fato de que isto era apenas uma questão de método ou processo, em função da expansão da consciência que a ayahuasca propicia e, não, de identidade religiosa, para a qual o decisivo é o conteúdo doutrinário daquilo em que se crê (perfil de crença) e o tipo de propósito que se pretende atingir.

    Como exemplifiquei em A Rainha da floresta: em Rio Branco e em torno da cidade há centros espíritas, terreiros de umbanda ou de candomblé, e de pajelança cabocla, que utilizam a bebida em seus rituais, e existem na Amazônia variados grupos indígenas que a usam em suas práticas de pajelança, as quais, inclusive, diferem quanto ao em que creem, variando conforme as etnias indígenas, e por isso não compõem ‘religião’ alguma, nada mais sendo senão tradições locais ou, no máximo, regionais, e sem também que sejam ‘linhas’ de uma ‘mesma religião’.





Preparo nativo de ayahuasca


    Para todos estes variados modos de expressão ritual ou de culto o fundamental é o sistema de crença que adotam, segundo o conjunto de crenças de cada qual, sendo a bebida um importante recurso acessório, um meio habilidoso. Poderia ser outro, ou nem haver nenhum, e daria no mesmo.

    No caso da missão religiosa estabelecida por mestre Irineu, o que se dava era o uso da bebida em rituais religiosos nos quais se preconizava o autoconhecimento transformador e se pregava exclusivamente os conceitos de vida e fé presentes no Evangelho, razão por que ela se caracterizou como missão cristã mariana daimista de evangelização”.