IDENTIDADE EXCLUSIVAMENTE CRISTÃ

Devo esclarecer que, como se pode verificar nos três livros da Trilogia Juramidam (que desde o primeiro semestre de 2013 passaram a ficar disponíveis na internet apenas em área restrita, mas podem ser lidos em versão impressa), minha intenção não foi atribuir maior valor ou importância a algum peculiar princípio de crença, defendendo-o entre os muitos existentes: o que me guiou foi o intuito de discernir e expor com clareza a identidade e o propósito da missão religiosa estabelecida por mestre Irineu, localmente chamada de “doutrina daimista”, na exata medida em que as fontes adotadas por mim apoiassem tal discernimento e exposição.



    Neste sentido, no Estatuto do Ciclu registram-se trechos que, embora redigidos em linguagem rebuscada, não permitem outro entendimento senão o de a missão religiosa estabelecida por mestre Irineu ter sido exclusivamente cristã, embora extravagante em sua expressão, se comparada às formas convencionais de culto cristão, dado o uso ritualizado de daime e práticas ritualísticas como os “bailados" grupais:
O culto a Deus em espírito e em verdade (...), emergido segundo o critério de seus fundamentos, o qual tem por limites:
a) o Cristianismo e a fé evocados por seus membros, partindo das lições em Filipenses 3: 18-19 e 1 Coríntios 1: 18, que consagram o grande símbolo de Cristo, o Criador;
b) a integração dos vinculados à Santíssima Trindade, mediante aliança celebrada nas visões e revelações;
c) a fortaleza dos mesmos na doutrina de Deus Pai, Filho e Espírito Santo.
(...) A esta entidade, com a sigla e o nome acima [Centro de Iluminação Cristã Luz Universal], é conferida a seguinte hermenêutica:
a) Centro, representando o ambiente e a condição humana;
b) de Iluminação Cristã, designando a centelha divina e o caráter cristão a brilhar nos ensinos e instruções, em especial à consciência de seus membros e adeptos; Luz Universal, isto é, a Luz Suprema, o Trino e Uno Ser Divino Pai, Filho e Espírito Santo.

    De mais a mais, nas menos de 50 páginas do Estatuto foram utilizadas 92 passagens bíblicas diferentes para esclarecer os princípios ali estabelecidos, extraídas de ambos os Testamentos, enquanto não se encontra nenhuma citação alusiva aos textos básicos de Alan Kardec, às religiões orientais ou hindus, aos cultos de matriz africana ou a fatores animistas presentes em crenças indígenas, entre tantas possibilidades do que teria sido sincretismo.




    Para esclarecer ainda mais com dois trechos do Estatuto, seu Artigo 7º estipula que, ajustada à pragmática do culto, alinha-se a exegese à Virgem Santíssima e ao excelso e Trino Ser Supremo, cabendo ao principal dirigente, segundo o Artigo 23º, salvaguardar a entidade ante as heresias que exprobram a bendita Virgem, as Sagradas Escrituras, a Santíssima Trindade e os fundamentos especificamente cristãos (negrito meu, nesta citação do Estatuto).

    Quanto aos hinos da base doutrinária, que foram a minha principal outra fonte, e como relato em pormenores no livro A Rainha da floresta – a missão daimista de evangelização, quando eu pude, de 1995 a 2001 (eu só tinha os meses de janeiro de cada ano, de férias anuais, daí este tempo todo...), conduzir em Rio Branco, no Acre, um longo e meticuloso estudo sobre os hinos da base doutrinária junto aos que ficaram encarregados da preservação oral de sua melodia e letra, os denominados ‘zeladores’ (Percília Matos da Silva, no caso dos hinários de mestre Irineu, de Maria Damião e da Santa Missa; Luiz Mendes do Nascimento, no de Germano Guilherme; Francisco Grangeiro Filho, no de João Pereira; e Adália Gomes Grangeiro, no de Antônio Gomes), o que me motivou foi a necessidade de definir com precisão o conteúdo de cada verso de cada estrofe de cada hino de cada hinário da base, certo de que, assim, conseguiríamos o retrato mais fiel possível da substância religiosa própria da ‘doutrina daimista’ [isto é, aquilo que delineou a missão religiosa de mestre Irineu], para bem além de testemunhos, memórias e interpretações pessoais.




    Tal estudo foi orientado também, além das gravações e debates, por um tríplice critério:
a) grau de coerência de conteúdo em comparação com a Bíblia, hino a hino, para determinação do perfil teológico da ‘doutrina daimista’, se cristã ou não, tomando por parâmetro de comparação os Evangelhos, já que a ‘doutrina daimista’ se afirmava ser a missão de Jesus Cristo Redentor ou a doutrina do Salvador [como foi cantado em hinos da base],
b) grau de coerência de ensinamento dentro do hinário ao qual cada hino pertence (para aferir a consistência conceitual interna de cada particular hinário, isto é, se os hinos de um mesmo hinário apresentavam ou não discordância conceitual entre si),
e
c) grau de coerência de sentido com os hinos de outros hinários da base doutrinária (para poder aferir o grau de integridade conceitual do conjunto de hinos da base doutrinária, quando cotejados os hinos de todos os hinários da base doutrinária entre si).

    Só com tal tipo de abordagem minuciosa seria possível também identificar o que se tratou, em cada hino, de profissão de fé ou de estrutura narrativa e descritiva própria de cada ‘recebedor’ de hinos (localmente chamado seu ‘dono’), supondo-se que esta estrutura narrativa varia conforme o perfil individual de cada um [linguagem adotada, expressões idiomáticas, temática destacada, etc], mas as profissões de fé devem ser exatamente as mesmas no perpassar do hinário, assim como os princípios de crença, caso haja consistência de conteúdo.

    Basta ver que termos como Mãe, Pai, Virgem, Amor, Deus, Filho ou Jesus são dominantes nos hinários da base doutrinária e todas as vezes, com nitidez invariável, ocorrem dentro da atribuição de significados que é feita pelo Cristianismo: “Mãe” ou “Virgem” sempre se referem a Maria Santíssima, “Pai” se refere a Deus, “Filho” e “Salvador” se referem a Jesus Cristo, e assim por diante.

    Assim, nas 1.374 estrofes dos hinos da base doutrinária se leem, por exemplo, 438 Mãe, 310 Pai, 245 Virgem, 245 Amor, 217 Deus, 195 Filho (por vezes o termo refere pessoas como "filhos de Deus"), 169 Jesus, 160 Mestre (por vezes o termo aponta Jesus Cristo) e 103 Maria, enquanto não se encontra nem uma única vez um termo típico do Candomblé ou da Umbanda, e nem apropriações simbólicas mais recentes, como "Mãe-Terra".

    Mesmo termos referentes a aspectos da natureza são minimamente presentes: 41 Estrela, 31 Sol e 18 Lua, sendo que na maioria esmagadora dos casos são só simbolismos, assim como o Cristianismo os adota também.

    Como exemplo do que digo, S. Luís Maria Grignion de Montfort afirmou no Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, referindo-se à Maria Santíssima: visto ser ela a aurora que precede e anuncia o Sol de justiça, Jesus Cristo, deve ser conhecida e notada para que Jesus Cristo o seja.

    Para resumir a importância das letras do que se canta nos hinos, já que são elas que indicam a identidade de crença, eu lembrei no A Rainha da floresta que, no tocante a textos estáveis de fé, necessários ao conhecimento para compreensão, de forma duradoura e sustentada no trajeto do caminho a Deus, os exemplos são muitos: no Budismo há os sutras compilados pelos discípulos de Siddartha, no Confucionismo há os Analectos de Confúcio, no Cristianismo há o Antigo e o Novo Testamentos (mais notadamente este último), no Hinduísmo há o Mahabharata, no Islamismo há o Alcorão, no Judaísmo há a Torá, o Talmude e a Mishná, e no Taoísmo há o Thai Shang, de Lao-Tsé. No caso da ‘doutrina daimista’, tal como foi pregada por mestre Irineu, há 316 dos 317 hinos dos hinários da base doutrinária.

    Como igualmente sintetizei: tivessem sido escutados com atenção os hinos da base doutrinária, teria tido melhor propriedade categorizar a missão religiosa estabelecida por mestre Irineu como mariana e carismática, do que xamânica e sincrética, como em geral fizeram os pesquisadores que adotaram a dissidência por fonte confiável de informação, pois ao menos teria sido preservada sua característica de centralidade cristã e poderia ter sido mais bem estudada. No que foi feito, faltou perspectiva histórica e faltaram conhecedores de Antropologia da Religião e sua prima anciã, a Teologia.

    (Na primeira Dissertação de Mestrado sobre o tema, de 1983, o “Cefluris” já fora caracterizado como “dissidência” da missão originária, a de mestre Irineu, mas tal fato nunca mais ganhou o imprescindível realce, que explicitaria a origem das diferenças existentes.)

    Por isto propus, no A Rainha da floresta: após vinte anos de análise crítica positivista da ‘doutrina daimista’ já terem dado o que de essencial poderiam dar, pelas lentes da Antropologia cultural, da História e da Sociologia, talvez esteja chegando a hora de aplicar um outro olhar sobre aquela missão, ampliando o que de conhecimento efetivamente religioso, e até teológico, possa ser desenvolvido.

    Como também expus neste livro o que permite a hipótese de a missão religiosa estabelecida por mestre Irineu ter se afirmado como uma missão carismática, dada a manifestação do Espírito Santo e segundo cantam os hinos da base, tema que não detalho aqui, mas pode ser compreendido lá.

    Seguem abaixo os links da versão impressa dos livros da Trilogia Juramidam: