Para abordar este aspecto, lembro alguns trechos do livro A Verdade além da doutrina – a busca
daimista do Rosto de Deus.
Numa
célebre descrição de “êxtase transportador”, S. Agostinho relata em sua
autobiografia (Confissões) o que
viveu numa noite, debruçado em uma janela de Óstia, cidade portuária vizinha a
Roma, ao lado de S. Mônica, sua mãe: elevando-nos
em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente por todas
as coisas corporais até ao próprio céu, donde o sol, a lua e as estrelas
iluminam a terra. Subíamos ainda mais em espírito, meditando, falando e
admirando as Vossas obras. Chegamos às nossas almas e passamos por elas para
atingir essa região de inesgotável abundância (...) Ali, a vida é a própria Sabedoria,
por quem tudo foi criado, tudo o que existiu e o que há de existir, sem que ela
própria crie a Si mesma, pois existe como sempre foi e sempre será.
O êxtase em Óstia
Repare
que ele diz “chegamos às nossas almas e passamos por elas”: é por dentro, é por
dentro!
Por
esta causa, segundo conta João Rodrigues Facundes, antigo
seguidor de mestre
Irineu, o que
mestre Irineu mais almejava em nós era a gente se conscientizar da gente
mesma, se olhar.
Era onde
ele se prendia mais:
o ensinamento maior dele era a gente se olhar, se olhar e se olhar, que por meio
disto chegava o resto. Tudo, tudo,
tudo. Que enquanto a gente está procurando Jesus dentro
das paróquias, dentro
das multidões... ele está realmente em todos esses lugares... mas
é muito melhor
a gente procurar
dentro da gente,
que a gente
encontra com
mais facilidade:
a gente se virando para
a gente mesmo,
vai se encontrar com
Ele com mais
facilidade do que
dentro de um
templo ou
até dentro
da mata.
Para
este mergulho profundo em si, essencial à reforma íntima e ao desenvolvimento espiritual, estudos contemporâneos demonstram que
meditadores experientes usualmente
apresentam importantes alterações bioquímicas perduráveis em
seu sistema
nervoso central,
fruto de anos
ou décadas
de trabalho paciente
sobre si
e requisito da expansão de consciência que
favoreça um mais
amplo e melhor
contato consigo e com
Deus, na alma.
Com essa mesma
finalidade, no caso da missão religiosa
estabelecida por mestre
Irineu o que se verificava é o uso deliberado de princípios
químicos específicos,
residentes no daime, para facilitar
a dinâmica de expansão da consciência que,
com outros métodos
de desenvolvimento do autoconhecimento e da espiritualidade, costuma requerer longa prática, complexa e
metodizada.
Mas como isto se
dá? E por que isto é útil?
O daime
(ou ayahuasca) é uma bebida preparada com
a infusão de um
cipó, o ‘jagube’ ou
‘mariri’ (Banisteriopsis caapi), e uma folha, a ‘rainha’ ou ‘chacrona’ (Psychotria viridis).
A folha "rainha"
A folha contém substâncias psicoativas que
atuam no sistema nervoso central como neurotransmissores (por
terem estrutura molecular análoga à da serotonina que o nosso cérebro produz
naturalmente), facilitando a conexão de
neurônios que usualmente costumam não estar conectados uns aos outros.
O cipó "jagube"
Ao
mesmo tempo, no cipó há princípios químicos
que impedem as enzimas
estomacais de anularem o efeito das substâncias presentes
na folha.
Em um período variável após o daime ter sido tomado, a consciência
expande e, com isso,
amplia-se a possibilidade de o praticante
reconhecer dados
do próprio psiquismo e até dados mais sutis do meio ambiente, que
já estavam presentes e só não eram mais bem percebidos.
Com estes dados,
então, pode trabalhar-se melhor
na reforma pessoal, munido de mais informação
e compreensão sobre si
próprio, sobre outras pessoas e sobre
a vida e ou a eternidade.
Para
entender melhor, observe a figura a seguir:
Usualmente,
o campo de consciência
de alguém (1) mantém disponível para acesso imediato
apenas parcela
do conteúdo psíquico
total (2). Se perguntada sobre seu nome, família, trabalho, artistas prediletos,
o livro que
está lendo ou a preferência
política, entre
inúmeros aspectos, a pessoa
rememora de pronto. Mas, se indagada sobre
o número telefônico
da casa de infância, o nome de quem
roubou seu primeiro
amor ou
os filmes assistidos no ano anterior, dentre outras possibilidades, deverá se esforçar
por conseguir relembrar –
quando o consegue –, embora tais dados estejam armazenados nalgum
canto da memória,
se é que já não foram jogados ao esquecimento.
Além
disso, há conteúdos inconscientes
só acessíveis
por intermédio
de recursos ou
atividades especiais,
como a associação
em dinâmicas psicoterapêuticas e em meditação induzida, ou
revisitados em sonhos,
especialmente se relativos
a episódios traumatizantes,
à infância, ao período
de gestação, à herança
psicoemocional da família e dos antepassados e, para aqueles que
creem em tal
possibilidade, a dinâmicas afetivas
vividas em encarnações
anteriores.
Em estados
de consciência expandida – isto é, além de ti mesmo,
como descrevia S. Agostinho, ou além da razão
natural, na expressão de S. Tomás de Aquino –, o campo de consciência e a
possibilidade de apercepção dos conteúdos psíquicos se ampliam (1a), como se vê na situação ‘B’ da figura, facilitando a recuperação de memórias por conexões
e associações ocorridas na mente e alargando a amplitude de consciência sobre dados
do meio ambiente imediato ou mais remoto (3).
Habitantes
de várias regiões do mundo costumam utilizar substâncias
propiciadoras de expansão da consciência para descobrir a localização
de cardumes (pesca),
de animais (caça)
ou de inimigos
(guerra), sem
que saibam ‘cientificamente’ como
ocorre. Para eles,
e por isso,
o recurso utilizado para expandir a consciência costuma parecer ‘mágico’.
No
decorrer da história conhecida, religiosos de muitas civilizações buscaram
expandir o estado de sua consciência por meio de recursos variados, embora não
soubessem como isso se dava, o que só pôde ser mais bem entendido com a
Neurociência e a Psicologia dos séculos XX e XXI.
Uma
descrição da monja carmelita S. Teresa de Ávila (1515-1582) é preciosa para percebermos
melhor o que pode ocorrer em momentos assim. Diz ela, em sua obra Relações e favores, que o
arrebatamento vem com um único indício de que Sua Majestade [ela se refere assim a Deus] dá no mais profundo da alma, com uma
velocidade tal que ela tem a impressão de ser arrebatada para sua própria parte
superior e de sair do corpo; eis por que é necessário ânimo, no início, para
entregar-se aos braços do Senhor, a fim de que Ele a leve para onde quiser.
Porque, até que Sua Majestade a ponha em paz no lugar para onde quer levá-la
(digo, levá-la a entender coisas elevadas), por certo é preciso, no princípio,
que a alma esteja bem determinada a morrer por Ele; porque, no início, a pobre
alma não sabe o que há de ser aquilo.
S. Teresa de Ávila
Observe o comentário da própria monja, entre parênteses: digo, levá-la a entender coisas elevadas.
Trata-se
de viver e compreender o mundo inteiro (ou o que se possa) dentro da alma.
Quase todo o mais é alegoria em imagens mais ou menos vivazes, que é como a
mente simboliza o que está sendo vivido em um estado que poderíamos chamar de ênstase, neologismo criado pelo filósofo
francês ateu André Comte-Sponville para se referir à experiência ‘de dentro’ e
se contrapor ao que em geral se supõe ser experiência ‘de fora’ e costuma ser
descrito como um ‘êxtase’.
Tudo
que não esteja ao alcance do campo de consciência, que por natureza não abrange
todo o conteúdo psíquico, para o consciente é como se estivesse "fora da pessoa",
e um específico atributo da mente, que é o de simbolizar intensas experiências internas
por meio de imagens e construções narrativas (como se dá em sonhos), é o que
faz supor que o daime seja alucinógeno.
Frades
ou monjas medievais, que em intermináveis jejuns ingeriam cerveja e ficavam
semanas a fio em salões abafados e intoxicantes de fumaça e dióxido de carbono,
sob monótonos cantochões gregorianos.
Budistas
tibetanos que se mantêm imóveis por dias seguidos, entoando mantras repetidos e
repetidos e repetidos, respirando economicamente, envoltos em névoas de incenso
e imersos em introspecção.
Xamãs
siberianos ou ameríndios que acendem tochas de plantas aromáticas em iglus ou
ocas, sob o encantamento de cânticos rituais e instrumentos sonoros.
Meditadores
urbanos que aprendem a exercitar a respiração para hiperventilar o cérebro, ao
som de tons de baixa frequência.
Todos
estes peregrinos da eternidade nos falam da grande utilidade de expandir a
consciência, para melhor percepção de si e de Deus.
Um
aspecto fundamental da missão religiosa estabelecida por mestre Irineu deve ser
aqui enfatizado: o da preservação da consciência, e de modo a não parecer
preconceito contra os cultos de matriz africana ou seus sincretismos, como a Umbanda. São outros caminhos e escolhas.
O antropólogo
José Jorge de Carvalho ensina em Um
espaço público encantado – pluralidade religiosa e modernidade no Brasil
que nem toda religião contemporânea
propõe um trabalho interno, ou espera isso de seus seguidores; quer dizer, nem
todas as formas de religiosidade esperam desvelar o caminho das moradas
internas.
Veja-se
o que mestre Irineu dizia sobre práticas que levam à abolição de consciência. Segundo
Percília Matos da Silva, ele era completamente contra incorporação, pois o
daime não manda ninguém vir lhe dizer, ele mesmo mostra... E por isso mestre Irineu
não adotava, não sabe? Esse negócio de incorporação, essas coisas ele nunca
adotou, porque... se o irmão está preparado, toma o daime e vai procurar... O
irmão recebe a mensagem que for preciso, a entidade até vem e lhe diz, o irmão
olhando a entidade, então o irmão ouve ou tem por intuição. Mas consciente! A
mensagem!
E é bom
conhecer um ensinamento de S. Agostinho, registrado por S. Tomás de Aquino em Suma de Teologia: quando um espírito
se une a outro, é possível que comunique a ele o que sabe, graças às imagens
que possui, seja levando-o a entendê-las, seja a aceitá-las como quem aprende.
Quando
se fala em contato ativo com entes espirituais, com manutenção da consciência,
para expansão do saber pessoal ou partilha de conhecimento, isto se refere à
possibilidade de convivência simultânea em uma mesma pessoa, por instantes que
seja ou por períodos mais longos, do espírito que anima a pessoa e de algum ente
espiritual – que passa a ser um duplo espiritual –, mas numa espécie de
fenômeno que não deve ser confundida com a abolição da consciência para a incorporação
de uma entidade, como é hábito dizer.
Porque não
se trata de entregar a consciência a um ente espiritual, seja qual for, já que
sem consciência não há livre-arbítrio ou mérito na escolha, e a possibilidade
de percepção, compreensão e opção conscientes deve, acima de tudo, ser
preservada.
Caso
contrário, o trabalho de autoconhecimento, de voluntária reforma íntima para
edificação pessoal e de recentramento em Deus, pelo gradual descentramento em
si e voluntária adesão à vontade de Deus, se compromete em alguma medida.
Sem
sincretismo com cultos de matriz africana ou crenças de origem indígena, este
árduo trabalho pessoal e este voluntário recentramento em Deus são o que a
missão religiosa estabelecida por mestre Irineu procurou auxiliar, por meio do uso
de daime e da liturgia que ele estabeleceu como método funcional de integração.
Para o monge hesicasta Jean-Yves Leloup, em Carência e Plenitude
– Elementos para
uma memória do essencial:
a liturgia
é o que reúne homens
e mulheres em
um contexto
e arquitetura específicos
em vista
da participação em um
culto ou
ritual, em
que os perfumes,
os cânticos, os gestos,
a proclamação da Sagrada Escritura, etc, têm como
função fazer passar de um estado de consciência
‘mundana’ ou
habitual para
um novo estado receptivo
de consciência, precisamente
na presença do Numinoso. Uma religião
– e, por maior
força de razão,
uma liturgia – que
não viesse a abrir
o homem para
a dimensão do Numinoso seria uma religião morta;
sejam quais forem as grandes ideias que
agite ou as efusões
sentimentais que
provoque, ela não
alimenta o homem
em sua
profundidade.
Em
virtude disto, quem já
louvou a Deus ou buscou conhecer a si próprio
sob efeito de daime, e foi bem sucedido, dificilmente opta por
outra alternativa, já que a expansão ordenada da consciência e a experiência
de transporte quase imediato
para a dimensão
do numinoso (ou dimensão da divindade, que em nós está na alma), raramente pode ser
vivenciada de forma tão intensa, imediata e fulgurante por outro método,
qualquer que seja o sistema de crença, fé ou liturgia que se adote.
Passado o efeito do recurso
que propiciou a expansão,
o campo da consciência
retorna ao que
normalmente costumava ser,
mas a pessoa pode
identificar nele, agora, um conjunto de novas informações
(muitas delas antigas), para poder
avançar melhor em
seu autoconhecimento e no trabalho sobre
si.
Dizendo
com outras palavras e com conceitos recentes, trilhas neurais da pessoa se
realinham espontaneamente no transcorrer do estado de consciência expandida –
assim como se dá em instantes mais intensos de processos psicodinâmicos
induzidos ou casuais –, propiciando novas associações de conteúdo e alterações variadas
nas dinâmicas de escolha e intencionalidade.
O que, por sua vez, gera a possibilidade de pronunciadas e sustentáveis transformações no
comportamento pessoal, até certo ponto independentes de reflexão mais detida ou melhor elaborada.
Reconhecemos
tal ocorrência quando dizemos de alguém que ‘já não é mais o mesmo’, desde que
viveu uma particular experiência emocional intensificada (agradável ou
desagradável) que o “reorganizou por dentro”.
A
muitos, no entanto, pode parecer desnecessário,
inadequado ou inconveniente, o uso de agentes vegetais como
os do daime para vivenciar um estado
expandido de consciência, como se não
houvesse mérito nisso ou o ganho de
consciência só devesse derivar
de prolongada disciplina metodizada.
Mas tal
conjectura é fruto de preconceito
ou desinformação,
por se supor erroneamente que os resultados de tais expansões de consciência não são
sustentáveis ou tornam a pessoa dependente
do uso habitual
da bebida para
prosseguir seu desenvolvimento interior.
Também não
se costuma ponderar que, se de fato a
motivação pessoal é atingir a transformação moral e ética, o mérito
reside no que se escolhe em estado
expandido de consciência ou após ele – graças às
novas informações
e compreensões – e não no feito, em si, de alcançar este estado.
Afinal, seja por um ou outro meio – tanto
faz, é só recurso –, o importante é ter acesso ao conhecimento e compreendê-lo, para
poder optar e se comportar de modo
justo, amoroso
e responsável.
É
importante saber que, segundo estudos
realizados há mais de 20 anos em vários países por pesquisadores
de distintas especialidades científicas,
o daime, diferente de outras substâncias
psicoativas (isto é, atuantes sobre
a psique), apresenta o que é chamado tolerância reversa, requerendo-se com o tempo, a
cada vez, menor quantidade
da bebida para obter um
equivalente efeito expansivo de
consciência, o que elimina o risco de dependência química.
Igualmente
é bom registrar que,
no ano de 2006, o CONAD – Conselho Nacional Antidrogas, que articula o Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República com os Ministérios da
Defesa, Educação, Justiça, Saúde e Previdência Social, emitiu Parecer, reafirmando
Pareceres de 1987 e 1992 e autorizando o uso de daime em
cultos religiosos
em todo o território nacional (inclusive com gestantes
e menores de idade),
após elaboradas análises
conduzidas em várias regiões brasileiras, durante mais de duas décadas, por equipes multidisciplinares compostas por profissionais
de Antropologia, Bioquímica,
Direito, Farmacologia,
Medicina psiquiátrica,
Neurologia, Psicologia e Sociologia.
Por
fim, não se deve olvidar
que o uso ritualizado da bebida, ao menos
em locais
não sincréticos, se dá num contexto em que princípios
doutrinários congruentes oferecem
balizas bem definidas para o trabalho
de reforma íntima prosseguir e
aprofundar, estando ou não o praticante
sob o efeito
de daime, na medida em
que avalia o mundo
e a si mesmo à luz do que conhece e
aprende no decorrer dos rituais e após
eles, no dia-a-dia da vida, podendo dar continuidade ao desenvolvimento de si em
inúmeros outros instantes, além dos vivenciados em um estado de consciência
expandida.
"Serviço bailado"
Isso confere
sustentabilidade ao trabalho que estiver em andamento,
se houver decisão pessoal
neste sentido, para
aperfeiçoamento íntimo contínuo e duradouro.
Quem bem explica é o médico e pensador
francês Hubert Benoît, em A doutrina
suprema: um homem que
tenha adorado uma mulher ou uma obra a cuja concepção ele esteja se dedicando, compreenderá o que pretendemos dizer.
Estando entregue às suas ocupações costumeiras, acontece-lhe deixar
de pensar conscientemente
em sua
amada, como
se a houvesse esquecido; mas quando seu
pensamento volta à imagem
querida, ele
percebe que não
a havia jamais abandonado por completo, que permanecera o tempo
todo junto
dela como em
um ‘segundo
estado’, em
um plano
de consciência subterrâneo.
Quando se trata
de nossa participação nessa libertação, esse
‘segundo estado’
não nos
é dado gratuitamente;
nós o temos de obter
por meio
de momentos especiais
de reflexão, à margem
da vida prática
habitual. Todavia,
esses momentos
necessários não
são o que
realmente importa; o que há de ser de fato eficaz
ocorrerá quando tivermos voltado à nossa existência
cotidiana e quando
a nossa fé
– agora mais
ou menos
desperta e atenta num plano de consciência
subterrâneo – houver travado com
o mundo exterior
uma luta vitoriosa
por uma parte
de nossa atenção
e, consequentemente, por uma parte de nossa energia.
Esta, a
importância de haver doutrina – do contrário,
bastaria tomar daime em
qualquer canto
e ficar quietinho: se a bebida torna
mais possível aprofundar o contato consigo
mesmo (e a eternidade),
por propiciar a expansão da consciência,
é o tipo de ensinamento adotado como baliza que
oferece (ou não) uma protetora orientação
no caminho de chegar
à verdade de si
e do mundo, no recentramento em Deus.
Em cultos
menos comprometidos com
disciplina espiritual
e coerência doutrinária, porém, como grupos
experimentalistas ou a dissidência que
foi estudada e descrita como se representasse a contento a missão
religiosa estabelecida por mestre
Irineu, embora não representasse, o que habitualmente se encontra
é um contexto conceitual incongruente ou desarticulado.
Neles,
predomina a justaposição de princípios
contraditórios em textos
e cânticos, que expõem distintos
sistemas de crença e até propósitos antagônicos, porque
provindos de bases contrastadas de fé.
Engendrando,
em quem os frequenta, um calidoscópio interno
que costuma mais
divertir ou
confundir do que
nutrir ou orientar,
numa sucessão de vivências
estéticas e um
aglomerado de noções
sobrepostas que não resultam em um
procedimento consistente de estudo de si e do mundo, no
caminho dialogal de resposta
a Deus.
Na missão religiosa
estabelecida por mestre Irineu, bem ao
contrário, nos cultos de fé em que os pilares
da crença cristã se ofereciam nos hinos para quem em geral não estudava a Bíblia (por falta de
costume, até hoje, ou mesmo de alfabetização, como antes), os adeptos cantavam
décadas a fio,
e várias vezes ao ano,
todos os anos,
quiçá no correr
de toda a vida,
os mesmos cinco
hinários da base doutrinária e os
mesmíssimos trezentos e dezesseis hinos com letra.
Como
sabem os que assim praticam, cantar os mesmos hinos dos mesmos hinários pode
levar a novos entendimentos em cada ocasião, pois o conhecimento não está só nos
hinos e, sim, em sucessivas ‘camadas’ da psique profunda e da alma, que são acessadas
a cada vez.
Com
isso, continuadamente se aprende mais e mais e mais de si, dos outros,
do mundo e da eternidade,
na medida exata
em que
o que há por
ser aprendido reside na alma
– como ensina
S. Agostinho em Sobre a potencialidade
da alma: ela traz todo o conhecimento,
e, quando vai aprendendo com a idade, nada mais faz que recordar – e os hinários fornecem e sustentam marcos conceituais definidos e
seguros, para o trabalho
de autoconhecimento e transformação pessoal poder progredir de modo ordenado e saudável,
se houver esta intenção e a firme
aplicação da vontade.