A SOMENTE SUPOSTA IDENTIDADE SINCRÉTICA

Neste amplo cenário, foi inevitável que a totalidade dos estudos sobre a missão religiosa estabelecida por mestre Irineu, na forma como foram desenvolvidos, tivesse atribuído a ela uma suposta identidade sincrética e folclórica.

Ao centro, e se oferecendo como exemplar, o sincretismo praticado e valorizado pelo “Cefluris”, a instituição que oferecera informação tida, pelos pesquisadores, como suficiente para compreender e descrever a identidade da missão religiosa estabelecida por mestre Irineu. Em torno, predominante, o ambiente generalista da Cultura Nova-Era, permeando as manifestações culturais, entre elas as de expressão religiosa, e atribuindo enorme valor a sincretismos e “mesclas de saberes”.






A isso se somou o fato de que, a partir do primeiro estudo acadêmico sobre o uso ritual de daime em expressões religiosas urbanizadas, feito em 1983, os estudos passaram a se autorreferenciar, reforçando-se mutuamente quanto às suposições adotadas.

    Como descrevo no livro A Rainha da floresta, por anos a fio uma sucessão de estudiosos de importantes universidades desenvolvera variados trabalhos, a partir do primeiro produto acadêmico brasileiro sobre o tema, uma Dissertação de Mestrado de 1983, adotando-a como baliza fundamental por ter sido a pioneira.

    Tomando-a por embasamento, distintos pesquisadores elaboraram mais Dissertações de Mestrado, Teses de Doutorado, livros e artigos, mas, ao fazê-lo, mesmo aportando novos enfoques, dela não se afastavam nem divergiam, delimitando assim, na raiz, o conteúdo do próprio projeto de estudo.





    Com isso, dezenas de análises diferentes reafirmaram por anos a fio noções errôneas que existiram na primeira, sendo erigido com o tempo um edifício inteiro de interpretações com idênticos, senão mesmo ampliados, vieses no entendimento e exposição do que fora de fato a missão religiosa estabelecida por mestre Irineu, com intensa repercussão nacional e internacional pela atuação da mídia.

    Ocorre que tanto a Dissertação inicial quanto o que depois foi feito se embasavam reciprocamente uns nos outros – obviamente o pioneiro embasou-se só em seu autor e seu próprio trabalho – e em depoimentos invariavelmente coletados em uma particular dissidência [o “Cefluris”], que havia muito se afastara, no principal e determinante, das crenças e práticas que haviam conformado a identidade, por quatro décadas inteiras, da missão religiosa estabelecida por mestre Irineu.





    Ademais, entre os pesquisadores mais frequentemente referenciados, entre os que até então tinham estudado e descrito a missão religiosa que fora estabelecida por mestre Irineu, não existiam especialistas em Antropologia da Religião, Ciências da Religião ou Teologia, já que usualmente eram antropólogos culturais, historiadores ou sociólogos. E era de religião que se pretendera tratar.

    Por fim, e isto não é sabido por quem não é cientista social – e a quase totalidade do público interessado em religião não é especialista –, o que um antropólogo faz é reinterpretar, com método e a seu próprio modo, as interpretações que coleta na pesquisa de campo, razão pela qual, segundo Clifford Geertz, importante filósofo e antropólogo norte-americano e fundador de uma vertente mundialmente orientada para a análise antropológica dos significados nas culturas, os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão.

    No entanto, quando vêm a público, estas interpretações, especialmente após terem sido referendadas por centros produtores de conhecimento formal, que são as universidades, são tidas pela opinião pública como suposta evidência inconteste do que afirmam, dada a sua aura de cientificidade, ao invés de serem vistas somente como pontos de vista estruturados, embora por costume apoiados no trabalho de outros estudiosos, além de no seu próprio trabalho no campo, cada qual conforme a seu jeito, foco de interesse, capacidade de investigação ou escuta e nível de competência.





Clifford Geertz

    Geertz formula com admirável precisão, em A interpretação das culturas, que o estudo antropológico da religião é uma operação em dois estágios: no primeiro, uma análise do sistema de significados incorporado nos símbolos que formam a religião propriamente dita e, no segundo, o relacionamento desse sistema aos processos socioestruturais e psicológicos [da cultura em que a religião é vivenciada]. A pouca satisfação que venho obtendo com grande parte do trabalho antropológico social contemporâneo sobre religião provém não do fato de ele se preocupar com o segundo estágio, mas do fato de negligenciar o primeiro e, ao fazê-lo, considerar como certo aquilo que precisa ser elucidado.

    Exatamente isto é o que invariavelmente se verificou nos estudos sobre a missão religiosa estabelecida por mestre Irineu, já que se partiu da descrição, suposta como inequívoca a partir da primeira Dissertação sobre ela, de ter sido fruto do sincretismo de crenças indígenas, cultos afro-brasileiros, espiritismo kardecista e catolicismo popular, o que nunca foi, parecendo restar, então, como de importância, interpretar o que ocorria histórica e socialmente em torno de homens e mulheres que a vivenciavam como  sua crença – e só.




    Destarte, o conjunto de significantes que propriamente conformaram a identidade da missão religiosa estabelecida por mestre Irineu não foi analisado em sua forma originária, enquanto o sincretismo predominante na dissidência foi tomado como o que sempre existira e, portanto, supôs-se nada haver a elucidar quanto a isto”.

Em meu entender, a isto deve ter se somado um certo repúdio às tradições convencionais institucionalizadas, mais notadamente o Cristianismo, cuja identidade, no Brasil, é enormemente vinculada à Igreja Católica e ou aos movimentos evangélicos pentecostais, tendo ambos intensa atividade moralizante muitas vezes conservadora e, por isso, indutora de afastamento.

    Em uma paisagem mundialmente empenhada em impulsionar a ampla liberdade individual de escolhas e de atitudes, mesmo se ocorrendo exageros libertários aqui ou ali, e em valorizar sincretismos, mesmo com incongruências insolúveis entre os princípios de crença neles expostos, conseguir escutar e identificar nos hinos da base doutrinária a devoção mariana e o perfil exclusivamente cristão da missão religiosa estabelecida por mestre Irineu teria sido contrapor-se em certa medida a tais dinamismos macroculturais predominantes – e talvez por isso não foi possível para os pesquisadores fazerem assim, o que pode ter enviesado sua percepção e entendimento – e adotar por postulado na análise aquilo que somente sob o signo da fé se pode acreditar ter havido: aparições ou revelações da Virgem Maria, Mãe de Deus, como fenômeno orientador de comportamentos humanos, tal como se crê na Igreja Católica e na Igreja Oriental, Ortodoxa.





    Mas foi exatamente isto, e não outra coisa, o que os hinos da base doutrinária cantaram: ter havido tal ocorrência dentro de um marco especificamente cristão, razão pela qual, no estudo descritivo da missão religiosa estabelecida por mestre Irineu, esta crença deveria ter sido levada em importante conta, independente do que os pesquisadores acreditassem ter havido.

Pois, como ensinou o antropólogo da religião Mircea Eliade no Tratado de história das religiões, um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro de sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa. Querer delimitar este fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela linguística e pela arte, etc, é traí-lo, é deixar escapar precisamente aquilo que nele existe de único e irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado.